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URGÊNCIAS

"Nas colagens de Esther Casanova, há um senso de urgência em fixar aquelas formas fugidias da paisagem urbana. Urgência que se materializa em recortes rápidos e precisos de papéis antigos e novos que a artista arquiva há muito tempo. Recortes e rasgos que ela organiza com precisão cirúrgica sobre uma superfície plana - "precisão cirúrgica" implica, vale lembrar, tanto destreza quanto velocidade. Urgências. A cidade retratada de dentro para fora uma vez que Esther projeta uma cidade subjetiva (aquela da experiência de cidade vivida, percorrida, admirada sempre com olhar de pintora) sobre a paisagem mutante que observa cotidianamente da janela de seu ateliê. Mas ela não quer registrar as alterações, nem denunciar a sandice da especulação imobiliária. A cidade com que o visitante depara na exposição é o resultado harmônico de um acordo, firmado talvez no inconsciente da artista, entre o que a cidade é, o que ela foi, o que Esther gostaria que fosse. Um acordo entre memória e lucidez. Entre crítica e sabedoria. Tudo resolvido com olhos e mãos de pintora virtuosa".


por Juliana Monachesi

 

CAMBIANTE

A obra de Esther Casanova está em marcha. Por vezes seu olhar fica mais cumulativo, os fragmentos se sobrepõem, cores, formas e volumes buscam se assentar. Por outro lado, tudo fica mais fluido, as imagens outrora cristalinas se desfazem, a atmosfera destes tempos líquidos ganha uma tradução em consonância com a incompletude plástico-conceitual de suas paisagens. Deslocamento, errância e um foco movediço criam um embate com uma vontade de permanência mais robusta. E, por entre as regras, estratagemas e decisões desse jogo, a artista paulistana cada vez mais, de passo cadenciado, realiza uma produção móvel e contemporânea.

Assim, Cambiante, a individual de Esther agora apresentada, finca seu interesse numa identidade que se transforma. Como se a acumulação algo ruidosa anterior se transmutasse agora num clima incerto, que ajuda a desgastar certezas formais e de pensamentos mais estanques, lançando a obra numa ênfase processual e de trajeto contínuo e mutante. Por isso, a estrada, simbolicamente, ganha um papel-chave nesta fase e as linhas, traços e cores de seu desenho vão impor sua materialidade encorpada. “Captar a cidade em uma imagem seria, sobretudo, acompanhar o seu movimento” 1, afirma Bourriaud em seu imprescindível Radicante.

A artista parte de um ponto comum para a série. Em viagens frequentes pelo interior de São Paulo, para visitar a filha, registrou em vídeos e fotografias, nenhum de alta resolução, esses deslocamentos. Polaroides e stills de vídeos de celular serviram de base para a mais numerosa série desta individual (e também são expostos como parte importante do recorte). Daí Esther desenvolveu aprofundadamente e com afinco tais trabalhos. Além de serem numerosos, cuja repetição entra em diálogo com vertentes do conceitual (lembremos, como bom parâmetro, de Time Series, de 1970 a 1979, de autoria de Hans-Peter Feldmann), o labor de Esther nessa nova técnica gera resultados interessantes. Por exemplo, ao privilegiar o carvão e a sanguínea, os materiais dão um tom crespuscular ao conjunto. Nada é muito ostensivo, solar. Um certo lusco-fusco termina por embeber o olhar do observador, que, por extensão, pode depreender dessa configuração em nota menor que há alguma melancolia no ar.

Ao mesmo tempo, as especificidades do audiovisual e do fotográfico, junto do desenho, conferem uma multiplicidade ao recorte, gerando outras leituras e direções mais abertas, muito ligadas ao presente. “Pois tal é o caso, neste início de século 21, quando o transitório, a velocidade e a fragilidade predominam em todos os campos do pensamento e da criação, instaurando o que poderíamos chamar de regime precário da estética” 2, reforça novamente Bourriaud.

E com a eclosão dos recentes desenhos, faz-se necessário rever as colagens apresentadas na individual e oriundas de outro momento. Com o convívio de ambas as séries no mesmo espaço, a estranheza desse recorte anterior parece mais evidente. Um céu em azul-chumbo, massas impessoais de construções urbanas em um cinza de diferentes matizes, formas imperfeitas em marrom, verde e preto que compõem uma paisagem quase infernal.

O conceito de colagem pode se alargar para os objetos e as fotografias também presentes em Cambiante. Pois se as colagens propriamente ditas são resultado de disposições, sobreposições, uniões e extirpações de papeis de variadas tonalidades, o fotográfico presente tanto nos tridimensionais como nos registros colocados na parede manifesta um desejo e um procedimento formal de acumulação (mesmo que as superficies pareçam unas). Por vezes é mais claro, por vezes é mais sorrateiro, porém sempre há elementos diversos em convívio, que podem estar deslocados do contexto original ou até exibirem mais precisamente de onde vêm.

Nas colagens em papel, cabe destacar que a relação com a cidade é mais estreita e explícita. É bastante reconhecível o skyline de SP, com suas antenas de TV e contornos de edificações conhecidas, mas, na série, Esther frisa mais sua poética por meio da atmosfera que perpassa o conjunto. Em cores menos viçosas ou também mais contrastantes, um tom que traz uma urbe em estado sepulcral é predominante. Um furta-cor que invade a vivência metropolitana, como a anunciar que a tentativa de escape dos desenhos posteriores, como em um road movie filmado num analógico que vai desaparecer ou que nunca alcançará uma completude, ostente um ar de desencanto.

“O elemento colado, por sua imperiosa condição de fragmento, chama a atenção para esta qualidade de ausência, torna a própria ausência presente, por assim dizer, e revela a verdadeira natureza da representação, que não passa de aparência, redução, substituta, signo” 3, escreve Rosalind Krauss sobre tal operação.

São aspectos a atestar a inquietude da poética de Esther Casanova. E, em todas as séries agora exibidas em Cambiante, a voz quebradiça de David Byrne, já em 1985, poderia ecoar: “We're on a road to nowhere, come on inside/ We'll take that ride to nowhere, we'll take that ride” 4.

 

Mario Gioia, junho de 2016

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